Como se chocolate fosse receita mágica para esquecer. Como se a feniletilamina disfarçasse o mau humor enquanto se espalhava por suas veias – antes isso que doses extremas de álcool ou qualquer coisa da qual pudesse causar-lhe algum mal. Como se suas vestes em lantejoulas compensassem por seus falsos desapegos. Como se cada adorno que brilhasse mais que um holofote quebrado ofuscasse seus defeitos. Como se a maquiagem mascarasse a pútrida face que não a rosada ou esbranquiçada ou Rosa 25, Cor-da-Pele 14, que seja. Como se falsas declarações, opiniões plagiadas, plágio declarado? Como se jogos de palavras fossem uma descrição. Como se esses anacolutos dessem a ideia algo pré-determinado. Como se palavras gastas fossem determináveis. Como se pessoas fossem determinadamente indescritíveis. Como se fosse uma realidade.
Ouve-se passos, salto-alto, é um Prada. Desfilam as bolsas de couro de cobra - o guizo ainda parece ressoar -, gravatas de seda italiana. Enquanto os motores se aquecem, preparando-se para voar enquanto o semáforo ainda está vermelho, ali está, confortavelmente - absolutamente, não - olhando para cima se vê o sino da catedral, um céu onde poucas estrelas cintilam, mas ali, ali está, deitado no cimento, com uma coberta de notícias sangrentas e poluídas, um corpo até então inacreditavelmente sobrevivente, ou uma alma que desesperadamente foge do fim.
O sinal já é verde, e o ronco do cavalo desperta do sono aquele que dorme. Talvez tenha tirado dele a única chance de sonhar. Outro ronco. Agora mais deshumano. O ronco é a fome, a fome que também sobrevive. Assim que se livra dos roncos pega no sono; dorme. Mas o despertar veio logo, o raiar do sol veio mais forte do que se esperava.
Desiste, se livra das cobertas improvisadas que o aqueciam. Senta, olha para o céu como se esperasse por uma resposta. Raios de luz atravessam os vitrais da enorme igreja, que parece fazer uma dança de cores. O pobre adentra, passando pelos portões grandiosos. Ajoelha e reza mas nem sabe se tem fé.
Pedem para que se retire, tinham de preparar o recinto para o casamento de uma família distinta. Enquanto saía, lhe passava pela cabeça que nem a casa de Deus escapava do impuro dinheiro. Até lá onde supostamente estaria a salvo e seria bem recebido a qualquer momento.
Todo dia seu pensamento era o prédio mais alto, ou os trilhos ferroviários qe cortavam a cidade. Talvez uma ponte, um viaduto, oh não! Só precisava de uma força maior que fizesse-o sentir-se (ainda) mais fraco. O momento de fraqueza talvez não iria tardar a chegar.
Ele não percebeu, nem sequer sabe seu signo, mas no horóscopo impresso em seu cobertor dizia: "Não é dia de desistir."
~ pausa um tanto quanto dramática ~
Acaba de me ocorrer um fato engraçado. Mas meu coração já é leve. Não confie em estranhos, não. Não confie em estranhos que falam engraçado. Não, não confie em estranhos que falam engraçado e incompreensivelmente, não, não mesmo. Imaginem um jardim encantado com flores e pássaros gorjeando. Bom, se o jardim for de pedra, as flores forem carros, os gorjeios suas buzinas e os pássaros apenas pombas, imaginem.
O sol incandescia, ponderoso num céu azul sem nuvens, sem vento, sem frescor.
"Umcopodjagapufabofiadapreu".
"Obrigada(?)".
Risada de gengivas sem dentes acontecendo, tentem imaginar - "Naofiaumcopodjaguapufavo".
"Copojagua? Ahhh, desculpe-me. Espere um instante."
A espera poderia ter se tornado uma eternidade, poderia ter ido, desaparecido. Dado esperanças a ele e desapontá-lo.
"Aqui está."
"Numprecisava", cada gole na água era a pretenção de um afogamento. Cada gota gelada era um refúgio da orbe da qual mal a sombra escapava.
"Mostalingamostaansim". De sua boca desdentada, sua língua agora hidratada saia da toca como um caramujo da casca.
"Senhor, eu não falo japonês." - oh, criança, santa ignorância.
Lembre-se de nunca dar água a um velho de sorriso gengivoso e que mostra a língua. Poderia tê-lo salvo, mas afinal, ele que me salvou.
Uma de suas combinações favoritas. Por mais que soubesse que não estava sozinha, era como se estivesse. Um cachecol, 12:12.
Absurdo era o tremer de dentes e os cristais d'água deformando sua imagem para os que a viam de fora. Se carbono é diamante, areia é pérola, nada mais digno para as gotas da chuva que batizá-las de cristais.
Estava tudo encharcado e gélido, mas por mais que se esforçasse, não tinha como negar - amava aquele frio, aquele chover ou quase-chover.
Ver tudo tão vazio e triste era um tanto quanto mórbido, talvez como um funeral sem corpo. E ela não imagina no que ela mesmo constantemente se transformava. Não fazia ideia. Um desenho deformado na janela, um coração distorcido, uma estrofe, um verso, uma paixão subliminar. Uma arte pós-moderna. Pouco se sabe.
O caminho é sempre o mesmo, mas há sempre um novo significado. Um semáforo que enrubresse no lugar errado, um guarda-chuva que se abre, um outdoor desmoronando. Para cada gesto um significado, cada nuvem, cada expressão...
O erradio relógio marca 4:30, como se o erro fosse fatal, o que significaria? Um-seis-cinco, gritava o prédio rabiscado. Mas 360º foi o tempo que levou pra contornar todas as nuvens. Uma volta: no tempo? no espaço? Quem sabe. Nas nuvens.
Agora vinha o sol e desmanchava tudo. As letras não eram mais rabiscos, os números não eram mais absurdos e tudo estava dourado no céu.
Andei fugindo daqui. Fugindo demais.