– Vamos dar a voz a alguém que saiba o que fala. Você, mulher – aponta, ironicamente e chama a chorona. – desatem-na.
A mulher caminha até perto do púlpito de olhos estatelados e atônitos, de súbito já está de joelhos, ouve-se um cochicho:
–...livrai-nos do mal, amém – e um grito – Vos imploro! Libertem-nos, tudo isso só pode ser um pesadelo, eu nunca fiz mal algum a alguém, minha vida vem sendo um mártir e os dias que vivo são um castigo, mas o que lhes dá o direito de nos manter em cativeiro? É nossa casa, é petulância sua!
– Como ousa?
–...perdoe-me! – diz se recompondo, não era de hábito que reagisse explosivamente, era num geral de um comportamento econômico de expressividade. Inexpressiva era a palavra que melhor a definia. Indiferente é a melhor maneira de retratar a reação das pessoas quanto a ela. – ...só tentei...
– Apenas responda o que lhe for perguntado. Baseie sua posição compondo argumentos com as novelas que assiste enquanto se contorce de remorso por não ser feliz.
– Eu... Não sei. Novelas? Argumento... O que quer de mim?
– Diga-nos... Por que as novelas são tão estereotipadas? Ou por que as pessoas estão tão estereotipadas? Por que a vida? O amor? A arte... – desengasgava, o videocassete, essas palavras.
– Já entendi. Deixe-me ver. Não acho que novelas ditam alguma coisa, seja a moda vestida ou o próprio comportamento.
– Não ditam, inspiram. Fornecem as ideias e os de mente fraca apenas acompanham.
– Não, não! Veja bem: eles de certo modo representam realidades paralelas.
– Ou a partir delas acontecem realidades paralelas?
– Bom... Partindo de certo bom senso, as pessoas muito aprendem com o enredo e são lições para toda uma vida.
– Dois amores, traição, inveja, cobiça, sexo, filhos fora de casamentos, tristeza, depressão, violência, mentira, morte. Bons valores. Ah, desculpe-me, acho que conheço essa história de algum lugar...
– Mas – em soluços e gaguejos, as lágrimas já prestes a lhe escorrer os olhos – nada que disser me afetará. Continuo convicta de que assisto por entretenimento.
– K-ham, se querem ouvir minha tese – de garbo e elegância surge uma tevê (mais uma!) – vos digo: novelas são divididas em categorias mexicana, teenager dreams, novelas infantis, horário nobre vulgo horário insalubre, ficções científicas, novelas de época e por último, mas não menos importante comédias pastelão com um parrudo forte e que desfila seminu no enredo. Por vezes há combinações entre essas categorias que combinam em uma rês ainda pior e mais vergonhosa.
– Defina-as, por favor. – pede o liquidificador tão participativo.
– Novela mexicana: em síntese, personagens de nomes compostos, uma dublagem mal feita, um enredo charlatão, amor, paixão, traição, intriga, um galã moreno, uma mocinha de lábios vermelhos e curvas acentuadas. Alguém sempre fica doente, alguém sempre engana alguém, alguém sempre é contra o relacionamento. Termina no casamento, na lua-de-mel, na gravidez.
Sonhos adolescentes, ah, patético. Um colégio de fofocas, um grupinho parcialmente do bem, um grupinho extremamente do mal. Bullying – que palavra modista. MODA! Música, filhos de então artistas! Escolas de interpretação para alcance do horário nobre. Enredo com vinganças, conflitos, disputa de popularidade. Incrível que mesmo se passando em escolas, não parecem aumentar de conhecimento, só a taxa de natalidade.
Ah, as novelas de criança! Nomes doces, um mascote felpudo, amizades eternas. Até aí conseguem encaixar intriga e inveja, mas quem liga, é tudo tão fofo, angelical...
– Mexe, mexe, mexe com as mãos, – a atenção foi desviada – pequeninas! – todos encaram o rádio – Que foi? Não pude resistir.
– Mas eis que nos resta: horário nobre. Vergonha, oh, céus. Listar tantos valores negativistas chega a ser cansativo. Mas é o que mais audiência tem, talvez por mais se aproximar duma realidade. Não duma realidade concreta. Duma realidade idealizada onde você quer sofrer, para achar que no final tudo dá certo. É quase um conto de fadas, mas moderno e impuro. Mas quem disse que contos de fada são puros...
Ficções científicas, duas palavras: mutantes, fim. Novelas de época, valem pelos investimentos em figurino, cenário e trilha sonora. Comédia pastelão: já falei do parrudo seminu? Então sem mais.
– Baila con mi cutara por aqui por alla... – num ritmo caliente o rádio aqueceu os ânimos.
Como pode uma carcaça sobre rodas manter tantos segredos e histórias? Tantos interlocutores e enredos. Os personagens se vem e se vão sem delongas. É costumeiro mas não é posse. É uma aventura épica a cada oportunidade, pena que nem todos enxerguem assim.
Ônibus é o nome disso. Conhece tudo e todos, cada sotaque, cada trabalhador - talvez não os de alta patente, mas esses não são dignos desse conhecimento abrangente do ônibus. Imaginem só a catraca como se sente, conhece todos os estereótipos possíveis de corpos cansados de debruçam-se e esbarram-se por ali todo santo dia.
Agora sou o vidro que observava, observava e refletia o segundo banco após a catraca, do lado do motorista. Uma mulher com ar doméstico, de quem lava, passa, cozinha, usava roupas baratas e que lhe caiam mal; destacavam um corpanzil deteriorado pelos anos, mas não lhe tirava a feminilidade. Ela se senta naquele banco, vai a janela com cara de quem busca por sossego. Busca jogar nas ruas as angústias que carrega.
Eis que surge um sujeito grisalho. Quarenta? Cinquenta? Nunca saberei. A janela é de vidro, não é bola de cristal. Eu vejo e narro o que vi, não adivinho. Ele era dono dum bigode também grisalho. Uma cara pitoresca, daquelas que a beleza despreza, mas a pobreza se orgulha. Senta-se ao lado da mulher. Estariam eles conversando? Isso não é de meu interesse. Para mim, uma janela de vidro, os raios de meio-sol que transparecem me parecem mais agradáveis que a conversa de duas pessoas randômicas. Ok, mas eles estavam falando alto demais, era chamativo. Após alguns segundos se encarando, um estralo. A coxa da mulher se avermelhou, não me resta dúvidas, e foi apertada por uma mão previamente conhecida, cheguei a essa conclusão depois de ouvir o galante cochicho:
- Você se lembra daquela noite? - não foram só meus olhos onipresentes e transparentes que se arregalaram diante de tanta ousadia, todos ao redor olhavam surpresos. E qual reação esperavam da mulher?
- Deixe de saliência, homem! Deixe de sa-fa-de-za - dizia a mulher se desvirtuando dos dedos que fincavam-lhe a carne da perna, como se com essa esquiva se livrasse dos olhares, um tom desesperador. - Você sequer me ligou.
- Ah, mas você não ligou também e... Me diga, como vai sua vida?
- Arranjei um namorado aí. Imprestável. Acredita que eu dei um sapato de 100 real de presente de Natal e ele nem presente me deu, acredita? Vê se pode...Terminei com o traste, não soube me dar valor.
- É, que coisa feia, mais deselegante. Se fosse comigo eu daria um denguinho, não é? Não se faz uma coisa dessas...
- Mas e você? Soube que você estava de namorico...
- Não mais. Ela não era pra mim, sabe? Ela era possessiva demais, sabe? A gente estávamos dividindo apartamento, sabe? E era assim, um dia eu cheguei cansado do trabalho, deitei no sofá, pedi um dengo e ela ficou brava. Sabe por quê? Porque era aniversário dela e eu não lembrei. Ah, mas é demais uma coisa dessas.
- Vê se pode uma coisa dessas...
- Mas e o Tonico?
- Ah, esse aí não presta! Acredita que ele terminou comigo porque me viu nos amassos com o Tonhão? Isso lá na estação. Ô homem bom! Mas aí ele viu, e terminou. Vê se pode...
- Mas então, que dia vou poder te visitar - aquela história de mão boba nunca foi aplicada em situação tão incômoda quanto parecia estar sendo para aquela mulher.
- Deixe de saliência, homem, deixe de safadeza! - desconsertada muda de assunto - E quando é que você volta a trabalhar no mesmo turno que eu?
- Estou vendo, depende do chefe... Saudades de fazer gostoso no ônibus... - aperta ainda mais vorazmente a pobre mulher.
- Chega de saliência, homem!
- Nossa, suas coxas estão gostosas, andou malhando?
- Na verdade, estou sim. Ontem o professor ia fazer a gente dançar forró, daí nem tem muito homem na sala e todas as mulheres foram assanhadas para ele, mas eu não, olhe lá! Mas aí ele falou que já tinha escolhido o par dele, e me tirou para dançar.
- Hm,- constrangimento? Mas qual! Sequer ouviu - mas eu percebi que você andou malhando, tá cada vez mais goxxxxtosa!
- Deixe de saliência, hooomem! Deixe de SA-FA-DE-ZA.
Talvez aquela conversa tivesse continuado. Talvez ele tivesse conseguido o que queria. Talvez as janelas tivessem estilhaçado e já não observassem e ouvissem nada. Mas não se estilhaçaram. A porta rangeu, a narradora saiu, o ônibus sumiu Alvarenga a dentro. Mas naqueles bancos, sabe-se lá o que passa nesses turnos, nessas noites memoráveis, nessas saliências... O homenzinho saliente vive dando as caras por aí. Já foi engolido por aquelas portas que rangem diversas vezes. Passou ponderoso sobre aquelas catracas, sentou em diversos bancos, ora vazio ora acompanhado. Sempre vigiado sob o olhar curioso da janela que vos fala. Transparente, nada me foge, nem mesmo que o queira. Perifericamente.
- O que mais sua tão preciosa televisão tem a nos acrescentar, guri?
- Ah! Vocês estão tão velhos que mal digeriram metade das coisas que falei!
- De digerir ele entende - disse a geladeira e todos caíram no riso -, entende muito bem! Todas as noites ia ingerir e digerir alguma coisa lá na cozinha. Madrugada a dentro só se ouviam os dentes manducando coisa qualquer.
- Silêncio - o benjamim se esforçou, mas mal aguentava segurar a própria risada, muito menos a dos outros. - Fale então o que te encanta no videogame que tanto te vicia...
- Vício é uma palavra muito forte. Aliás o videogame seria algo mais intenso que a TV, pois eu não só admiro o personagem... Eu sou o personagem! Eu interajo! Eu me admiro, mesmo não sendo exatamente eu... É um "eu" com poderes!
- Poderes? Barba, tatuagens, carros e armas. É diferente de poderes.
- Eu aprendi a tocar guitarra e bateria!
- Grilharia!
- Fui várias vezes campeão dos mais diversos esportes: futebol, basquete, vôlei, boxe... Até surf e skate!
- Se você se preocupasse tanto em ganhar prêmios na sua vida concreta talvez você pudesse jogar de outro modo que não fosse como a bola com que tanto se assemelha...
- Aprendi várias línguas. Nunca sequer fiz aula de inglês e...
- Até onde você acha que vai com as palavras "start" e "game over", meu filho?
- Up, up, down, down, left, right, left, B, A, start, just because we use cheats doesn't mean we are not smart. - o rádio e suas interrupções alegóricas.
-...e até japonês.
- どのような途方もないばか。- o karaokê balbucia e aqueles tais eletroeletrônicos propensos a vender pastel na feira entendem e julgando-se pelo tamanho das risadas fora uma piada e tanto.
- Baka! - repete o microsystem.
- Esses jogos, acreditem ou não, me fizeram uma pessoa mais lógica e competitiva, isso refletirá de forma positiva no meu futuro acadêmico e profissional. Sempre almejando o melhor! Ser o primeiro!
- Não me admira que não tenha amigos... Os únicos que vinham aqui são aqueles mais pobres que tinham inveja de seus videogames de todas as gerações possíveis, tsc.
- Jogos que estimulam o raciocínio, a inteligência, o combate!
- Você só conhece esses jogos sangrentos da atualidade, não chegou a conhecer os verdadeiros clássicos - choraminga um Megadrive solitário - Pacman, Sonic e... é hora de brincar de telefone sem fio, meus caros! - se empolga o Megadrive que cochicha algo para o microsystem e pede que passe a informação. Ouve-se em surdina na sala apenas risinhos e os objetos continuam cochichando até que um daqueles rádios paraguaios com lanterninha na ponta cochicha na orelha do garotinho:
- UstedtusabesquieneresMarioperguntante?
- Mario o quê?
- Que te pegaste detrás del armário! Jajajaja - até a risada ainda era paraguaia, risada que se alastrou por todo o recinto.
O garotinho foi ficando rosado e vermelho e roxo de raiva até que num urro desmanchou-se em lágrimas. De vergonha? De raiva? Não se sabe. A humilhação fora tanta... Ataram-no, então de volta à cadeira. Tiveram de lhe tapar a boca também, pois desembestara a abrir um berreiro. Sessão tortura psicológica - over.
"Um não sei quê, que nasce não sei onde,
Vem não sei como, e dói não sei porquê."
Camões.
"Um não sei quê, que nasce não sei onde, vem não sei como, e dói não sei porquê." - pensava, apenas pensava. Era um trecho de um poema que ressoava em sua mente há tempos. Era um trecho que de tão petulante até dava cambalhotas. Por que estava tão certo? Era uma verdade que rompeu séculos e ainda assim traduz e não descomplica um sentimento eterno que se renova de tempos em tempos.
"Um não sei quê", que é afinal? Concreto? Abstrato? Relativo. É o beijo? O abraço? Um sentimento, um medo, uma vontade, um querer, um bem, um mal? É ser ou estar? Verbo, substantivo, adjetivo ou advérbio? Decerto que está relacionado a um sujeito... Mas o que é? Possuir ou pertencer? Sentir ou ser sentido? Conjugar o verbo amar ou deixar-se conjugar...
"...que nasce não sei onde," nasce. Nasce ou já estava lá? Surge, imerge, emerge, transforma, adapta. Metamorfoses. Transforma: por dentro, por fora, ao redor.
"...vem não sei como," repentino, brusco, mal educado, sem pedir licença, ousado, descarado. Traz junto uma bagagem de coisas: tralhas nas quais se desperta apego. Perfumes, lembranças, figuras, sombras, sabores, palavras, datas, saudade.
Saudade "e dói não sei porquê". Aquela saudade inata de não sei o quê, não se sabe como, quando, onde. Muitos advérbios interrogativos. Saudade, palavra ingrata. Inexistente na tradução. Sentir falta. Falta, ausência. "Dói, não sei porquê".
Tudo estava muito calmo, pacífico demais. Mas o gordinho de olhos atônitos se remexe imperceptivelmente na cadeira e se livra dos grilhões que o atam e se rebela:
– Você acha que pode me deter? Está muito enganado! Aprendi com o 007! – mostra a língua – e isso aprendi na MTV – só imagine o gesto obsceno que envolve um dedo, sim, ele o fez, seguido de exclamações e palavrões.
– Detenham-no! – o benjamim soava tão preponderante, mas lhe caia bem essa função.
Cabos e fios corriam e escorregavam pelos rodapés casa a fora, mas o menino esquivava rápido demais. De gordinho a atleta, era uma mudança e tanto. Desapareceu.
– Você sabe que te encontraremos! O venceremos pelo cansaço. Você deve estar ofegante e nós podemos ouvi-lo, senti-lo e... A-HÁ!
– Um... acordo... acordo! Que me diz? – suplica o menino enquanto arrastado de volta a sua cadeira. –
– Peço apenas por voz! Deixem que me manifeste!
– Não acha que se manifestou o suficiente?
– Você tem exatamente 10 minutos! E não reclame se for interrompido.
– Isso é uma injustiça... Hm, deixe-me ver... Por onde começar? Ah, vocês reclamam tanto que não temos cultura com o tempo que desperdiçando jogando, assistindo filmes sangrentos, terror, comédia, sexo, drogas... Bobagem! Aprendemos tanta coisa! Vejam só os...
– Isso inclui os palavrões e os gestos que você nos ensinou a pouco? – algum atordoado interrompe bruscamente.
– We only have got four minutes to save the world – interfere o rádio.
– ...os desenhos animados! São cheios de valores! – continua o garoto, insensível aos comentários desnecessários – Sempre há um herói.
– É, assim como nas guerras.
– Ora, mas heroísmo é digno de admiração. Veja só, combate ao mal! Poderia passar horas citando aqueles que desperdiçam a vida...
– ...fictícia...
–...a vida para salvar as pessoas, a pessoa amada, a cidade, o dia, o mundo, o universo!
– Oh, quanto patriotismo! Sacrificaria você a sua pança gorducha para alguma coisa?
– Há também cultura, meus amigos! Música!
–... Só besteration-tion, besteration! – o rádio estava incontível.
– Arte! História! Ciência...
– Programas bons que começam as 5h da manhã e terminam antes de alguém normal possa estar acordado.
– ... Notícias! O que acontece ao mundo, todos podem saber, a mídia oferece!
– Tão confiáveis quanto essa sua fala sibilante e incômoda.
– Aprendi muito na minha infância...
– Crianças de hoje em dia nem sabem cantar cantigas de roda!
– Sabemos o suficiente!
– Cante!
– Atirei o pau no gato-to, mas o gato-to, não morreu-reu-reu, D. Chica atirou... Não? Espere, estou confuso. D. Chica brigou com a Rosa, debaixo de uma sacada... Despedaçada? Despetalada! Isso!
– Você sabe por um acaso o que é pião?
– O de rodeio?
– Meritíssima, com todo o respeito, não eram apenas 10 minutos? O tempo não se estourou?
– Não o impeça, não vê que está nos ajudando? Deixe-o prosseguir.
Não se pode confiar numa criança de seis anos. Não se pode confiar numa criança de seis anos que assiste desenhos enquanto seus pais limpam a casa. Não se pode confiar numa criança de seis anos que reclama quando surge um sonzinho agudo companheiro de notícia ruim.
- Olha, papai, um avião acaba de destruir os EUA.
Era uma manhã de setembro. Uma manhã jamais esquecida.
- Deixe de bobagem, para de ver esses filmes sangrentos e veja seus desenhos.
Por que toda criança é indigna de confiança? Veja, era um avião transpassando um prédio. Era uma visão horrenda e assustadora. Um prédio em chamas, fumaça, sombras, vultos, gritos...
- Não é mentira, eu juro. Olha aí!
Limpar a casa talvez fosse mais importante. A casa estava aqui e agora. Aquilo acontecia onde? Como? Quando?
- Vá brincar, menina... - olhos extremamente arregalados - Nossa! Vem ver, mulher!
A criança olhava descrente. Por que não confiar na palavra dela? E por que um choque tão grande? Aquilo é normal nos filmes não é? É como pular no sofá de um lado para o outro assim e um inimigo vem e... oh! Estou destruída! A menina se joga no sofá e simula uma guerra.
-... um avião vem e atinge uma torre e em seguida vem outro e atinge. Os EUA estão sofrendo um atentado. Tudo nos leva a crer que...
O prédio ruía, boatos incertos. Qual era a procedência daquela coisa... Monstruosa?
- Mas cadê os power rangers?
E se imaginou por alguns segundos naquelas ruínas. Sob elas ou sobre elas, ou antes mesmo de acontecer. Como seria? A sensação. Um desastre, um horror, uma fatalidade. Algo que iria mudar o rumo do mundo? Algo que ia imortalizar aquela manhã. Passaram apenas alguns segundos. Não, agora ela só queria ver seus desenhos.
Quando um dia pode começar mal? Não é o cheiro de café que te devora antes que possa devorá-lo. Nem a chuva que cai e embaça vidros de janelas, carros, óculos e embaçam olhares vidrados. O dia começa muito bom e muito cedo - ou a noite terminara cedo demais?
O primeiro susto não vem de Orquídeas. Vem de um não-16.
- Ônibus errado? Oh, céus! Mas passa no Colégio?
- Lamento. Talvez se correr...
A porta se fechara atrás de mim? Ou fora eu o último indivíduo furioso a deixar as portas do não-16?
Sorte lhe sorriu depois do azar? Só teve de correr como louca desfrutando a chuva por um quarteirão cheio de trânsito. Mal pode conter o alívio e os meigos risos. Começou bem.
Dedos quase a calejar num xilogravar afro inspirador. Uma alimentação vaga, uma distração vaga. Um dia com risos e felicidades momentâneas. A felicidade ontem fora dum momentâneo duradouro de lhe contagiar os ânimos.
- Você precisa se cuidar.
Já é tarde, escurece. Olhares tímidos e provocadores é o que os boatos dizem.
Adentra a casa. E um bombardeio de maus acontecimentos. Pequenos problemas que se acumulam, agravam e deterioram seu bom humor.
Soberana de todas as narrativas, enxerga na 3ª pessoa o cometimento de seus erros.
"Orutuf sod suem sonalp" - facada no peito begins. "Eu sinto muito", - facada no peito reloaded.
Nos sonhos vai encontrar algo bom. Dorme logo, criança. Abraça a coberta e desiste de pensar. O sonhar te confortará melhor que qualquer pensamento. Até mesmo os pesadelos.
~ sessão inútil aberta ou desilusão pessoal reinaugurada ~
É importante que saiba, querido Inverno, que acordei como desejou. Seu despertador, a chuva, veio manhosa e ladina* me acordar logo as 7h da manhã num dia de feriado. Mas não reclamo. Não é castigo, nem penitência, sacrifício ou martírio. Acordar com a chuva ruidosa no asfalto que ruidosa se afasta e chia nos pneumáticos dos autos lá fora é digno de mais palavras destinadas a você e sua piedosa doçura.
Seria um agrado seu, Inverno, por me ver assim tão redimida por meu erro? Estás contente e realizou meu pedido? Há tempos que peço em vão por gotas milagrosas. E elas caem agora sem cessar... Talvez gostaria de ser uma gota dessas para percorrer uma dessas flores que agora desabrocham, um desses quaisquer avisos primaveris. Despeça-se antes de ir embora, não me abandone aos meados de setembro. Permaneça aqui, como vento, como chuva ou como sol que à súchia observa tudo.
As flores secaram de uma hora para a outra. Foi um engano crucial. O frio voltou para avisar que o inverno ainda soprava meus cabelos. Os quinze graus foram só um aviso magoado.
Me perdoe, inverno, por estar enganada. Como pude confundir, logo você, que me deixa tão inspirada.
Porque tudo no inverno provoca mais, até suspiros são mais prolongados, até o respirar se torna mais difícil. Até o nascer do sol é mais poético, pois ele se torna adorno dos céus, apenas um penduricalho a mais. Não traz calor, mal traz luz, só traz esperança. Esperança? Não! Traz dúvida. Ele nasceu, ele está ali. Era improvável, mas ele está ali. Ele nasceu, e em dia de nuvens fartas você nem o vê, mas sabe que está ali. Expectativa.
Os ventos, traga os ventos, inverno, não os esqueça. Esvoace muitas madeixas, chacoalhe muitas pétalas e galhos, arranque e derrube muitos chapéus, derrube muitas roupas do varal, provoque muitos arrepios. Acima de tudo: faça-os querer calor.
Esqueça da chuva, para que todos sintam falta dela. Adie o quanto puder a volta da garoa. Assim, quando ela chegar, quantos serão os loucos que vão se banhar sob aquelas generosas geladas gotas?
E os ventos mudaram de direção - direção ou sentido? Não se sabe ao certo. Mas sentido, é isso. A diferença do vento é sentida. Na pele, nos poros, nos arrepios.
O inverno não fora rigoroso com ela - comigo em especial - mas sim com as palavras. Mil estórias me passam pela cabeça, giram, brincam, se estapeiam e fogem. Não hoje. Se o vento as desejava tanto deveria ter esbravejado mais, levado-as embora enquanto tinha tempo - e tinha todo o tempo do mundo.
Eu aguardo seu perdão, querido inverno, por meu mundano e leviano engano, com o cachecol nas mãos e um cobertor vermelho jogado na cama desarrumada.
– Oh, não! Mais uma TV? – o barbeador herdou a impaciência do antigo dono.
– Mas é claro, o que me impede de depor? Juro que é de fundamental importância o que tenho para dizer, meritíssima.
– Prossiga.
– Meu companheiro muito vos disse sobre a violência, mas venho lhes propor o esclarecimento de vossas dúvidas, o que lhes parece? Vocês indicam o que querem saber e vos explicarei sem cessar. – mas ora, vejam só, é a TV da cozinha! – O que me dizem?
– O que me diz então, companheiro, de discutirmos sobre política? – disse a geladeira soltando uma baforada fria.
– Política, minha cara? Então dissertemos, companheiros, sobre o humor pastelão que é a política de hoje, companheiros! Oh, que vergonha! Calafrios me causam os cinquenta minutos que sou obrigado a emitir a pateticidade em que se transformou o horário político. Eles se enfrentam como cães brigando por território. Talvez esse seja o problema: lutam por território e não por ideais. Que me perdoem os cachorros, desmerecidos dessa comparação ínfima. Esses homens – e mulheres – disputam como tais, com as características próprias dos seres humanos: a capacidade de mentir, enganar, ludibriar. Talvez até haja algum fruto bom dentre tantos podres, mas como saber diferenciar? Parecem iguais. Uns acusando os outros até que aparece um palhaço que esculhamba com tudo de vez. Isto é uma vergonha, companheiros! Não há o que fazer... Ir à favela abraçar os pobres? Vasculhar a vida particular dos oponentes e tentar achar uma coisa a que possa se apegar. Procuram defeitos, defeitos e mais defeitos até que se vêem diante dum espelho, do próprio reflexo. Demoram a perceber que são tão iguais. É assim que a política está. Homogênea ou lúdica demais. Distribuir pão é um pouco ultrapassado, agora a moda é falar que vão distribuir computadores, notebooks e internet de graça. Personalidades que por si só não demonstravam menor respeitabilidade agora são candidatos a cargos públicos – e vencerão. Apesar de todo mau-caratismo, toda má-fé, vencerão. Por senhoras como essa que não acredita em mudanças, por adolescentes desinteressadas como essa, ou crianças como esse pirralho que convencem o pai a votar no da roupa mais colorida, melhor trocadilho ou melhor jingle...
– Vote com prazer, k-kham, – uma voz muito promíscua e devoradora sai dos alto-falantes – Desculpe, não pude evitar – desculpa-se o rádio muito sem graça.
– ... Sim, é um exemplo, mas, por hora, acho que devemos parar com esse discurso. De que adianta, não votamos mesmo.
– Se votássemos não faria a menor diferença – suspira um aspirador de pó, fadigoso.
– É aí que você se engana, companheira. O que estamos fazendo aqui neste exato momento? Fazendo a diferença. Não acha que é o que poderia acontecer? Não sei se por comodismo ou por subestimar-se demais, mas as pessoas – e até mesmo nós, objetos – esquecemos de nossa importância individual.
– Mas afinal, que cenário é esse político que tanto fala?
– Um ventríloquo, um hipocondríaco, um burguês, uma ambientalista, um cristão. E esses são só os principais. Ainda há os ladrões, as prostitutas, os palhaços, os aspirantes a artistas, os filhos de artistas...
– Para cara de pau? Peroba neles! – o rádio interrompe novamente – Desculpe, não pude me conter.
– ... Debates apaixonados! Ideias descomedidas e exorbitadas! Síndrome de perseguição e falsos aliados! Combinar cor de gravata com ideais simbólicos, jogar estatísticas e dados – não a seu favor, mas contra seus inimigos adversários. Chineses invadindo o comércio, proibir alimentos gordurosos, combater a criminalidade, as drogas, o desmatamento, a pobreza, a doença, os chineses! Estou ficando confuso! Conciliar meio ambiente e desenvolvimento, hospedar o mundo inteiro com futebol e depois trazer a Grécia inteira! São tantos ideais, tantas anomalias, tantas discordâncias. É tudo muito desconexo. Acho melhor encerrarmos por aqui, por hora. Cruzar os dedos que não tenho para que não nos coloquem em mãos erradas. Ajudai, ó, bigode grisalho de vestes coloridas, a descobrir afinal de que é que se trata politicagem, pois mesmo depois de anos de experiência não entendo vossa democracia.
Nem se quer sabe se está sendo sincero. Solta um "Estou bem. Não estou cansado. Pareço cansado?" - e boceja logo a seguir. E o que ela queria ver? Sangue? Ciúmes? Felicitações? Indiferença.
Só pela demonstração fria de falta de afeto, deixou claro que tudo era algo de extrema irrelevância.
Era o cheiro que perturbava. Um cheiro que vinha da noite, das sombras, das lâmpadas de sódio - amarelomortas. Um cheiro que mesmo dentre jardins urbanizados, fechada por tijolos e concreto, jasmim - o jasmim?, a jasmim! - a jasmim exalava seu perfume hipnotizador. Ele respirava aquilo como se fosse o único ar compatível com seus pulmões.
As confusões de todo dia. O cheiro de jasmim, afinal de contas, era da flor?, da noite?, das sombras?, ah! Como pôde se deixar perder por esses caminhos. O cheiro era da pele. Pele como pétala - branca, aveludada, macia, tenra. A única diferença talvez fosse os poros arrepiados com o frescor da brisa noturna. Arrepios da flor ou dela? Pétala.
Comparara uma flor a um corpo. A pureza da flor à alma. Cheiro é perfume? Terá ela gosto? Fome? Tem sentimentos? Alguma coisa lhe dizia que a flor não iria lhe responder. Talvez os barulhos da rua, ou os silêncios da noite.
Pontos de luz - é o que chamam de estrelas - não conseguiam iluminar muita coisa. Uma noite sem lua, uma rua escura. Guia-me, jasmim. Leva-me a um lugar melhor. Longe... bem perto. Perto dela, braços dela, perfume dela, seu perfume, guia.
E o que era o perfume de jasmim? Eram as flores preferidas de alguém. Me guia. Chegou. Onde estou? Ele está perdido. Há flores e odores. Aromas e amores. Um cemitério cheio de lápides, nas quais enterrou suas lembranças. De cada cova um jasmim. Em cada epitáfio uma mensagem significativa. A ser esquecida ou a ser relembrada - trecho de música, de verdade, de despedida, de pedido, de briga. Enterrou. Mas a terra só guardou e silenciou. Brotaram jasmins. E o cheiro guia...
Flores nascem surpreendentes de galhos secos. E é setembro. É primavera. E só me dou conta quando vejo flores. Flores e amores. Cores, odores e sabores. E essa rima é o que melhor as define. Setembro.
Quando eu te disse que não precisava esperar, eu menti.
E setembro começa. Começa de um amanhecer dourado e sujo. Simbólico. Não para mim. Inconscientemente sei muita coisa. Observando, descobri muitas coisas. Sem observar, me dei conta de muitas coisas. Medo de estar enganada me faz esquecer muitas coisas que descobri, observei ou me dei conta - inconsciente.
E os vinte-e-poucos Celsius apontam para uma madrugada de peles macias e desnudas arranhando lençóis que mais incomodam do que confortam. E a ideia de mais um dia escaldante é mais pitoresca em contos de fadas.
Que é o alvorecer? Noite? Dia? Dorme? Desperta? Denotativamente não importa. São eles que alvorecem.
Aliás, sonhos. O que são sonhos. Desejos. Amores. Flores. Cores. Sonhos. Cavalo branco num campo florido? Cheiro de relva ou de florezinhas campestres? O vento, uma árvore, um balanço, o vestido, vestido algum, o lago, o anoitecer de um manto escuro respingado de tinta prateada, a grande bolha prateada, o reflexo imperfeito da lua no lago, corujas? sapos? E um número perfeito. De tão perfeito, imperfeito. Dois.
Sabe qual a doce - e que incrível, não azeda, nem ácida - aroma importuna minhas memórias a esta altura? Um galho donde pendem ramos e folhas e flores e limões. Doce. E imperfeito.
Quando eu disse que tudo daria certo, eu falava sério.
E a esta altura nada é perfeito.
Primavera, para que te quero?