E diziam-se lunáticos. Lunáticos, os loucos que mudavam conforme a lua. Mas quem, por uma desumanidade tamanha, não se deixa mudar pela lua?
E quem não mudaria com ela?
E quem não mudaria para ela?
E quem não mudaria por ela?
E loucos foram os que sonharam debaixo de sua luz azulada e fosca. E loucos foram os que desfizeram-se debaixo da chuva enquanto a lua se escondia. E loucos foram o que deixaram de enlouquecer enquanto ela minguava.
Pela fresta da janela via-se um buquê de rosas vermelhas. No segundo andar, sob um improvável telhado pontiagudo, sobre o parapeito da janela, suspirava. Sob cortinas pesadamente fechadas imperava um intrínseco silêncio.
O que cada vidraça escondia eram segredos intermúndios: ora opacos, ora translúcidos. E para todos os que contemplam de fora o espetáculo, representam-se os atos e enfim baixam-se as cortinas.
Emoldura-se a dama que se enfeita e lança olhares furtivos sobre a rua que segue paralela à sua vista e recaem sobre o jardim.
Lá fora, irradiam os primeiros vislumbres da manhã. Dentro, desprendem-se as cobertas. A luz que se deixa entrar, pinta o chão em quatro retas uma forma incandescente, que míngua e míngua e já à tardinha jaz.
E então banha-se o quarto num rubro crepuscular, tingem as paredes, que de brancas, enrubescem, arroxeiam-se e somem.
É quando apaga-se o sol, piscam as lâmpadas, os olhos e as janelas, que se fecham, todas.
Porém em especial, para uma, nasce a lua. Incandesce, agora azulada, tal forma, disforme à uma sombra. E a dama que pende à janela e seu sorriso que incandesce com a lua.
A música escala devagar até o segundo andar de um casebre de telhado pontiagudo. A voz rouca se aquece à calada da noite. E enquanto todas as janelas ainda dormem, a porta se abre e a última janela se fecha. E ao silencioso despertar do dia, amanhece o sol. As frestas da janela revelam um buquê de rosas. Despedem-se os cobertores. Invade, transluz e incandesce. E as vidraças respiram, abertas.
Desbotam-se os rostos,
Desbota-se a cena,
Desbota-se uma lembrança.
Memórias que não são minhas[não me pertencem]*, desbotam.
Desbota-se um quando,
Desbota-se um onde.
Rasuras e dobras que não são minhas,
Desbotam-se.
E o papel foto que imprimiu a vida desbota.
E a vida que agora é vivida desbota.
E a vida de cores vivas desbota.
E então, tudo é[se torna]* tom de sépia.
[*notas de quem nunca se contentou em ser poeta]
[original numa segunda-feira, 10 de janeiro de 2011, 4h55; madrugada que desbotava]
[localização do original: perdido no verso de uma foto antiga, no meio de uma edição desbotada de Memórias de Adriano, Marguerite Yourcenar]