E guardei todos os relâmpagos num recipiente de vidro.
O brado trovoar entoado assusta. O luzir das faíscas não. Talvez. Talvez o escuro ulterior assuste. Talvez o silêncio póstumo assuste. O relampejar não.
Capturei mais de mil raios, eles não puderam assustar a ninguém.
Capturei mais de mil raios, e eles se assustam.
Impertinente. A chuva cessara. No céu, nuvens davam espaço às estrelas. Mas as robustas copas das árvores eram cúmplices do vento. Balouçavam e despejavam o restante do sumo dos céus. O caminho não era longo. Era, infelizmente, curto e objetivo. Então resolveu esperar.
Essa intempérie urbana. E o farol enrubesce várias e várias vezes. E o estranho a contemplar. O chiar dos carros ao entrar em contato com o asfalto molhado era hipnotizador. O estranho a contemplar. Até que de tanto enrubescer até os carros cansam de parar. Até que não há mais carros. E está apenas a alguns passos de distância. E percorre a distância como se esvaísse pelos bueiros. Arrastava-se com um ar de viscosidade.
Seu corpo pesava. Sua mente ia longe. Seus olhos ainda mais. E as nuvens se aglomeram novamente. Ergue os olhos ao céu, apenas espera uma resposta. Uma partícula sequer. E quando a chave encaixa, uma gota cai e benze a testa. A porta se abre e é um longo caminho a percorrer. Cama.
"...no silêncio da noite... fico aqui sonhando acordado... jun-tan-do o antes, o agora e o depois."
Desacreditar no destino é estar fadado a sofrer as consequências do tempo e de todos os possíveis acontecimento. Pois numa combinação imensurável de possibilidades, começar uma manhã de quarta-feira comendo pão fresco é submeter-se a apenas uma dessas. Negar um pão. Doar um pão.
E pensar que ele ficou triste porque me neguei a aceitar o pão que ele oferecia.
E quando quinze minutos passam de meio dia e sem se dar conta, desacredita. Ser esquecida numa manhã de quarta-feira.
Por nervosismo, saí pra olhar na rua, sirenes perdem-se ao longe. O farol muda, re-muda e des-muda de cor. Avistar um perigo em potencial. Afastar-se do portão por precaução. Voltar às grades que me tornariam invisível. Cruzava a avenida, sob sol de meio dia, uma blusa de lã vinho e malcheirosa, calças desbotadas e rasgadas, trapos ornáveis que o tornava ainda mais peculiar. Por um carisma intrínseco, não consegui ostentar repúdio algum.
Aproximara-se, fingia que não dava conta de que eu me escondia por detrás das grades. Sua voz ultrapassava essa barreira, mas seu olhar era oblíquo e suas palavras direcionadas à minha mãe, que o desprezava, não por maldade, mas por não saber como reagir.
- A senhora poderia me dar alguma coisa?
Seus olhos miúdos refletiam a luz do sol. Transitavam carros e pessoas. Todas ocupadas demais para encarar aqueles olhos que luziam. Não abordara ninguém. Nenhuma outra casa, nenhuma outra pessoa. Ninguém tinha coragem de olhar em seus olhos, mas tinham bravura de andar pela rua, evitando a calçada em que ele estava.
- ...um pão?
Só olhei para minha senhora e ela já sabia do que se tratava. Tinha um pão fresco e intacto dentro de um saco de papel. Um pão solitário qual eu neguei mais cedo. Ela subiu para o buscar. E eu contemplava curiosa aquela figura engraçada que ali estava. Receosa, talvez, mas eu não tinha medo. Não tinha coragem de ter medo. Mas era meio dia e vinte. E para onde eu iria?
Eu indagava como ele não fora capaz de se dar conta de minha presença. Ele, inquieto, esperava por uma resposta positiva. Um pedaço de pão.
Ela volta com uma garrafa de leite e café, qual ele se nega a ficar. Transpõe o líquido num outro recipiente e devolve a garrafa. Agradece. Minha mãe nem uma palavra sequer dirige ao rapaz. Ele segura com ambas as mãos o saco de pão. Agradece e vai-se embora. Acabou. Foi-se embora.
Espere um momento. Volta. Agradece. Vai-se embora.
Meio dia e vinte e cinco. Para onde vou?
Volta. Eu estagnada, ele ainda não me viu? A insignificante aqui sou eu, sempre soube disso.
- Adam - palavras ininteligíveis - Massachusetts e Mississipi - mais algumas palavras ininteligíveis - escreveu em...
O que ele dizia? O que ele queria dizer? O que eu queria entender? Ainda voltado para minha mãe, jogava em vão as palavras contra ela, que nem sequer o olhava. Por que nem ela o encarava?
-... Eu gostaria de ter lido esse livro. Mas não me deixaram. Minha mãe também gostaria, mas ela morreu.
E como ele sabia do livro e ah, por que eu não entendi o que ele disse?! E se ele me olhasse. Eu ao menos estou te ouvindo.
- Eles vêm aqui e levam nossas mulheres. Mulheres, mulheres! Que são elas? Prejuízo trouxeram!
Mulheres? Olhe para mim? Por que fala mal das mulheres? É meu batom vermelho que te impede de me ver?
- Se Deus deu, se é que ele deu, o direito à nós brasileiros eles o tiraram de nós. Se Ele nos deu tudo...
Diga mais, por que sua voz vem e se esvai? Por que não formulam-se completamente? Elas estão se perdendo.
- Eu agradeço novamente. Obrigado.
Agradece. Vai-se embora. Meio dia e trinta. Vou me atrasar, será possível? Volte aqui e me explique.
E me explique porquê choro compulsivamente. Soluço e em tentativas falhas de conter o nervosismo minha voz falha:
- Por que nem sequer olhou pra ele? Ele falava com você!
- E você? Por que chora?
- Você não entende? Ele...
E não chego atrasada. Meio dia e trinta e cinco. Parto e me perco, não no caminho, mas em pensamento. Alvarenga e já é uma da tarde. Vou me atrasar. Saio sem fôlego. Tentando conter os soluços. Tentando respirar e uma longa subida até chegar à Liberdade.
E qual a ironia de discutir a utopística liberdade ou sua concreticidade. Fato é, tenho fome, não de pão, de liberdade.
Minha fome não é só minha. É por todos e me consome.
Não tenho como falar de liberdade se acredito em conspirações do destino. É por isso que acredito em liberdade e vejo no destino a utopia. Porque se tudo estiver traçado é melhor que seja sonho distante, porque viver de escolhas é melhor que se viver esperando.
E quarta-feira ao meio-dia é ato falho. Desacredito.