Não gosto de deixar esse dia passar em branco.
Só entendam que é um sentimento de metal exposto. Reluz e brilha.
Com o tempo tende a enferrujar.
Mas não há tempo que deteriore. Pode é até perder o brilho.
Mas não deteriora. É inoxidável.
(e faria novamente cartas métricas, gentilezas, carinhos, abraços, afagos e o silêncio do conforto)
Não era um esquife de luxo. Madeira boa, acaju. O tom avermelhado chamava toda e qualquer atenção em meio a tanto negro e tanto luto. O clima obscuro era construído das mais diversas percepções sensoriais: o cheiro da parafina que sai das velas lacrimejantes; os soluços, lágrimas e lenços úmidos; café imerso numa atmosfera de diversos odores; inclusive o morto que já fede.
É dia. E ainda assim velas. Janelas abertas. Luz solar. Brisas frescas. A manhã respira. O morto não. E por que velas?
O café também é luto. Mal é adoçado. Açúcar branco não respeita o luto. O café veste preto e desce amargo. Amargura para enfrentar a dor da partida.
- Quem é, mamãe? - uma menina de vestido preto, olhinhos azuis e cachinhos ruivos (segredo-vos: não inteiramente de luto), puxa a saia da mãe que simula choro.
- Tia avó do irmão do marido de sua prima, meu bem. - disse a afagar-lhe os cabelos ferrugem com uma mão, levando o lencinho aos olhos úmidos com a outra.
Crianças, quando realmente crianças, encaram a morte com inocência. A observar o defunto. A desejar-lhe que pisque os olhos, ou que respire. E a esperança da descoberta do século, gritar: está vivo! É só prestar atenção. Concentração. E... Decepção. Mortinho. Mortinho da Silva e todo eufemismo, por mais grotesco que seja.
O morto permanecia imperturbável. A sensação de repouso profundo, de sono pesado, descanso eterno. Ainda que a pele acinzentada, fria. A seriedade posta e imposta. Olheiras que sugam os vestígios de vitalidade.
Ah!, aos vivos só faltam as moscas. A verdade imortal: começar a morrer a partir do momento em que se nasce.
- Pois, diga: a morte vem de capa preta e foice à mão? - o maquiador de defuntos(?!) monologava. Monologava, mesmo se dirigindo ao morto, pois esse, ainda imperturbável, não respondia. Mas a resposta vem de algum lugar - do além.
- E, que diabos! Qual inferno, purgatório, céu, reino de Hades! Qual! Cada um vai para o inferno que deseja. Minha alma espirra em alergia a esse pó. Não me dava ao luxo dessas frescuras nem vivo. Agora morto? Batom?! Mas qual!
- Agora está mais coradinho! Faço milagres! - orgulhava-se e contemplava a obra-prima.
- Milagres num morto? Vá passar purpurina em outro! - o eco do além se propagava no salão - Por que não me cremaste, mulher? Oh, céus. Aprisiona-me a algo. Mande-me ao inferno, mas me livre de vagar. E se existe alma?
Cai a noite. O maquiador esquece de seu feito. Os entes queridos velam por seu amado. A luz pálida das velas é intrínseco ao espetáculo. No fundo a alma, daquele que nem acreditava que a tinha, temia por ser aprisionado. O cheiro de mogno era agradável. A sete palmos debaixo da terra, seria devorado. Reviveria no metabolismo de qualquer verme que putrifizera seus restos.
Reviveu na madressilva que, não importa o tempo, ele não morre, envolveu sua lápide. Inscrição na lápide - belo(?) epitáfio: alguém que soube viver a vida.
Um efeito da madressilva, que agiu como erva daninha, foi cobrir parcialmente a sentença. Alguém que soube.
Carregando uma moeda de um real por precaução. Nada que mude uma vida. Nada que se multiplique. Soube que o bilhete da loteria é mais caro. Tal qual sorte não me desperta interesse. Faria diferença para quem quer um pão. Não tenho fome. Guardei uma moeda, procuro uma fonte dos desejos. Atirei-a. Balela. Guardei uma moeda achando que faria diferença. Não em bolsos furados. Não tenho troco. Preciso de duas moedas e atearei fogo. A travessia do rio é longa e Caronte ficará grato com as moedas que tapam seus olhos. Um miserável e um chapéu no chão. Um espetáculo e agradece a cortesia. Ela, suas chagas moedas não curam. Seus olhos luzem como as moedas atiradas na calçada. Guardei uma moeda por toda e qualquer chaga. Ela brilhou ao sol.