e daquilo que fora castelo
não restava pedra sobre pedra
era dor cobrindo dor
grito cobrindo grito
sangue perseguindo lágrima.
Quis ser marginal.
Sentou sobre o muro, num pequeno vão: ao lado do portão, entre o arame farpado, a cerca elétrica e os cacos e garras afiadas da fortaleza. Quis. Por querer, fez-se. Era um marginal. Sorria e assobiava, gatuno? Não, apenas sorria. O muro era encardidamente branco. Ou era daquele tom de cinza tão urbano -- cinza-cocô-de-pomba, cinza fuligem, cinza urina dos cachorros, vira-latas e bêbados, cinza anúncio de búzios, cinza anúncio de publique aqui, cinza tão puro e simplesmente sujo do branco.
De sua marginalidade escapava poesia. Era marginal, naturalmente apolítico -- como todo humano, como todos os homens e por isso lutava. Fora criado num ambiente naturalmente a+humano, a letra a negava muitas vezes. Lutava com a palavra e contra ela. Dentro de sua cabeça e no muro, lutava. Guerreava contra sua própria pobreza. Era pobre sua alma, felizmente, porque nunca enriquecera.
Riscou no muro: ao lado do encanamento, entre a janela, o tijolo mal pintado e o azulejo que marcava o número da casa. Riscou ao subir, apenas seu passo. Com a sujeira do chão nos pés, sujou como se o muro fosse chão. Não via problema em ser marginal: sorria.
O que queria daquela vida? Precisar é preciso, e precisava tão pouco. Precisamente preciso. Pontual. Lá de cima observava quieto, e gritava por dentro. Pra quem? Pra rua que encontrava a avenida e desaguava no mundo, delta das ruas onde desembocava os esgotos. Dava tudo no mesmo. Seguia a pipa que dançava no céu. Não a achava livre. Uma corda a prendia na terra. Por isso estava irremediavelmente humana nos céus. Enroscou-se na árvore e caiu no telhado da casa do muro dos cacos. Cada coisa pertencia a outra para virar coisa só. Pegou a pipa, desceu e cortou a mão no caco.
Ao lado da pegada e entre todos os elementos tão dignos do muro deixou a marca vermelho rubro de sua mão. O escarlate de sangue escorreu tão vivo na parede morta que por um instante permaneceu humana. Se fora humana, padeceria.
A parede sorriu e foi embora manchada de sangue com sua pipa.
Desgraçadamente fria e despreocupada.
Não por falta de preocupação, mas de sensibilidade.
Não por falta de tato,
mas de olfato e paladar.
Mais por fome que por sede.
Mais por medo que por deleite.
Quis.
Pura e simplesmente.
a noite estava irrequieta
o que o asfalto perguntava
o pneu do carro respondia
os saltos da dama respondia
os passos bêbados respondiam
as patas vira-latas
o caminhar dos ratos
os diamantes dos ladrões
os ladrões de amantes
os fantasmas dos atropelamentos
o pousar das misérias poucas
os muitos restos de misérias
tudo rastejava
e nem uma gota sequer
de substância primordial.
Havia vida:
e — mas? — todos viviam uma só.
Havia veneno nas veias,
nas vias
a noite rastejava pela madrugada
ia, viscosa, mas lépida,
porque logo amanheceria.
Vejo na despensa da minh'alma
irrequietas
cerezas em conserva de saudade
todas nadando no vidro transparente,
olhinhos de chuchu vermelhos, na calda vermelha.
Ri quem não tem colírio (e nem nariz).
A musa − vermelha e dentuça − iluminava às segundas-cálidas-feiras.
Utinga veste o manto alviverde − imponente?
gogó de enfeite desceu pro pulso, amante latino,
uns dedos de moça de quem sabe tocar piano.
Só porque a receita do bife leva ajinomoto,
torrada aqui é feita de pão doce e orégano.
urbana a legião, cantava na linguagem que só os cães entenderiam.
− Sabe onde estamos?
Mudos falavam e comemoravam aniversários. Truco.
Amigas − não minta − odiavam-me: e todas hão. Seis.
Não me chames Clarice, nem Veríssimo, nem Ono. Nove.
F do carre*our apagou. É doze.
Regdur emprestava-lhe a sunga. Blefe.
Estava com a camisa vermelha sob o manto estrelado das Américas.
Di era o último a sair, chocolate na testa,
infantil I: reprovação.
Na-na-na-nanananaaaa*
Instante, roda gigante, aperto no coração.
Vida? − urge por transformação. LET IT BE.
Iríamos ao parque de diversões,
− Tudo bem, querida? − e depois,
apresentar-me-ia os narizes mais altivos! Num parque mais além,
lá onde guardam os segredos dos cinéfilos fazedores de ciências sociais.
Bom ombro tem, sabes que tem! E guardo para ti o meu;
− e me ensinou: lá dentro do peito, silêncio é bom também −
seria a voz (desafinada) da tua bondade ecoando:
− Sabe onde estamos? − tudumpás
alegra-me, cereza!, cante mais uma e nunca vá.
* ps 1: mais tarde, em mente e em coração, mudaria o verso para "Não fazes ideia da importância que tens pra mim, sim?", mas por questões satíricas, Hey Jude seria mais apropriado. Te amo. Obrigada por tudo, Victor Augustus Manfredini Vital Bessa.
ps 2: Se vier a reencarnar, nasça com um nome menor, não aguentarei outro acróstico-epopeia.