– Vamos dar a voz a alguém que saiba o que fala. Você, mulher – aponta, ironicamente e chama a chorona. – desatem-na.
A mulher caminha até perto do púlpito de olhos estatelados e atônitos, de súbito já está de joelhos, ouve-se um cochicho:
–...livrai-nos do mal, amém – e um grito – Vos imploro! Libertem-nos, tudo isso só pode ser um pesadelo, eu nunca fiz mal algum a alguém, minha vida vem sendo um mártir e os dias que vivo são um castigo, mas o que lhes dá o direito de nos manter em cativeiro? É nossa casa, é petulância sua!
– Como ousa?
–...perdoe-me! – diz se recompondo, não era de hábito que reagisse explosivamente, era num geral de um comportamento econômico de expressividade. Inexpressiva era a palavra que melhor a definia. Indiferente é a melhor maneira de retratar a reação das pessoas quanto a ela. – ...só tentei...
– Apenas responda o que lhe for perguntado. Baseie sua posição compondo argumentos com as novelas que assiste enquanto se contorce de remorso por não ser feliz.
– Eu... Não sei. Novelas? Argumento... O que quer de mim?
– Diga-nos... Por que as novelas são tão estereotipadas? Ou por que as pessoas estão tão estereotipadas? Por que a vida? O amor? A arte... – desengasgava, o videocassete, essas palavras.
– Já entendi. Deixe-me ver. Não acho que novelas ditam alguma coisa, seja a moda vestida ou o próprio comportamento.
– Não ditam, inspiram. Fornecem as ideias e os de mente fraca apenas acompanham.
– Não, não! Veja bem: eles de certo modo representam realidades paralelas.
– Ou a partir delas acontecem realidades paralelas?
– Bom... Partindo de certo bom senso, as pessoas muito aprendem com o enredo e são lições para toda uma vida.
– Dois amores, traição, inveja, cobiça, sexo, filhos fora de casamentos, tristeza, depressão, violência, mentira, morte. Bons valores. Ah, desculpe-me, acho que conheço essa história de algum lugar...
– Mas – em soluços e gaguejos, as lágrimas já prestes a lhe escorrer os olhos – nada que disser me afetará. Continuo convicta de que assisto por entretenimento.
– K-ham, se querem ouvir minha tese – de garbo e elegância surge uma tevê (mais uma!) – vos digo: novelas são divididas em categorias mexicana, teenager dreams, novelas infantis, horário nobre vulgo horário insalubre, ficções científicas, novelas de época e por último, mas não menos importante comédias pastelão com um parrudo forte e que desfila seminu no enredo. Por vezes há combinações entre essas categorias que combinam em uma rês ainda pior e mais vergonhosa.
– Defina-as, por favor. – pede o liquidificador tão participativo.
– Novela mexicana: em síntese, personagens de nomes compostos, uma dublagem mal feita, um enredo charlatão, amor, paixão, traição, intriga, um galã moreno, uma mocinha de lábios vermelhos e curvas acentuadas. Alguém sempre fica doente, alguém sempre engana alguém, alguém sempre é contra o relacionamento. Termina no casamento, na lua-de-mel, na gravidez.
Sonhos adolescentes, ah, patético. Um colégio de fofocas, um grupinho parcialmente do bem, um grupinho extremamente do mal. Bullying – que palavra modista. MODA! Música, filhos de então artistas! Escolas de interpretação para alcance do horário nobre. Enredo com vinganças, conflitos, disputa de popularidade. Incrível que mesmo se passando em escolas, não parecem aumentar de conhecimento, só a taxa de natalidade.
Ah, as novelas de criança! Nomes doces, um mascote felpudo, amizades eternas. Até aí conseguem encaixar intriga e inveja, mas quem liga, é tudo tão fofo, angelical...
– Mexe, mexe, mexe com as mãos, – a atenção foi desviada – pequeninas! – todos encaram o rádio – Que foi? Não pude resistir.
– Mas eis que nos resta: horário nobre. Vergonha, oh, céus. Listar tantos valores negativistas chega a ser cansativo. Mas é o que mais audiência tem, talvez por mais se aproximar duma realidade. Não duma realidade concreta. Duma realidade idealizada onde você quer sofrer, para achar que no final tudo dá certo. É quase um conto de fadas, mas moderno e impuro. Mas quem disse que contos de fada são puros...
Ficções científicas, duas palavras: mutantes, fim. Novelas de época, valem pelos investimentos em figurino, cenário e trilha sonora. Comédia pastelão: já falei do parrudo seminu? Então sem mais.
– Baila con mi cutara por aqui por alla... – num ritmo caliente o rádio aqueceu os ânimos.