A mulher desesperadamente ajoelha-se diante do púlpito e seus turvos olhos enfadonhos imploram:
– Deixe-nos ir! Isso é um ultraje! Eu que nunca nada fiz contra qualquer ser por mais desprezível que o seja!
– Isso acontece, minha senhora, porque dentre todos os animais o mais desprezível é você. – diz o microondas com um remorso entoado em sua voz trêmula.
– Eu fui mãe aos dezenove anos quando mal sabia o que era amor, me casei a força, fui infeliz por dezesseis anos, lavando, passando, cozinhando, fui trocada por uma secretariazinha medíocre de dezenove anos que me remete a mim mesma e como teria sido se tivesse um pouco mais de audácia na vida. Por mais clichê e copiada que minha história apareça virando enredo de novelas podres e filmes insossos, não dependo de assisti-los para que eu me sinta melhor ou pior ou menos medíocre como já disseram. "Olhai que de esperanças me mantenho!", o que hão de me tirar? Amor? Paz? Nada disso tenho! Nem esperança nem sobriedade. Preciso de conforto, talvez carinho, mas sou o que? Medíocre demais pra recorrer a qualquer estranho que me leve pra ver um filme chato e me console depois com seu calor. Medíocre, medíocre! Me encontro com trinta e cinco anos, tenho dois filhos, estou apenas cansada demais para tentar arriscar alguma coisa que dará errado. Me consolam os filmes, novelas e telejornais pois me lembram de que estou viva. Não sou a atriz que decora as falas, não sou a vítima do estupro do telejornal, muito menos a morta por qual choram os órfãos. Sou real, muito mais real que qualquer um deles. Sou viva e estou relativamente bem. Bem em minha depressão, bem em meu conforto natural e na barreira que construí com o mundo. O supermercado em que vou para suprir minhas necessidades é o contato mais humano que tenho com a vida. A caixa sorridente que me fornece o custo da compra é tão viva! O carrinho de compras transbordando aquelas ofertas imperdíveis que vi na TV. O supermercado com um neon apagado, uma letra R qualquer, fora consertado, agora fosforesce à noitinha. Volto pra casa, ligo a TV e novamente vejo minhas novelas e mentiras. Satisfaço-me assim. É a zona de conforto ideal. Não estou propensa a nenhum perigo. Não me sujeito a qualquer sorte. Sorte é para os fracos. Eu sou uma fraca tentando me manter da força. Perdoe-me por um parágrafo tão intenso, por tantas palavras juntas, por mal ter respirado enquanto vos falo! Sinto que meu tempo se esgota e estou apenas sozinha demais e cansada demais para tentar me reconciliar com a vida que tanto tentei apreciar. E deprecio com todas as minhas forças.
– Tirem essa louca daqui! Agora!
– Deixem-na em paz! – diz lacrimosa a geladeira, que se derrete e degela, mas parte em defesa de sua adorada ama. E não é só ela. Também o fogão chorava.
Não havia naquela sala ser que não houvesse ao menos se emocionado. Talvez um. Insensível. A filha parecia um monumento de pedra. Até os objetos tão inanimadamente supostos a não demonstrar qualquer expressão estavam visivelmente comovidos.
A geladeira parte incontrolável para cima da adolescente que estarrecida se afunda na cadeira de escritório. A geladeira ponderosa em frente a menina, sua cauda parte cortando o vento na direção da menina, e lhe atinge a coxa. O barulho é de súbito doloroso. Pode ser sentido apenas pelo estralo. O chicotear lhe abalou os ânimos, foi como um choque de consciência. A marca não fora tão superficial que ficara apenas na pele, foi além, no ego. A menina começa a chorar, lágrimas desesperadas, ainda com os olhos esbugalhados. Mas não gritava. Sequer gemia. Talvez seu olhar pedisse perdão. Redimia-se? Ou era ilusão. Era dor, apenas.
Arrastaram a mãe para o fundo da sala, não mais perto de suas crias. A primeira ré já havia sido inocentada. Ou abdicada de punição. Sofrera muito, não? Ou castigaram-na assim. Imunizando-a mantiveram-na longe de seu maior desejo: de que a fizessem sofrer.