Sábado, 25 de Setembro de 2010

... de saliência ou de um mundo mundano.

 

Como pode uma carcaça sobre rodas manter tantos segredos e histórias? Tantos interlocutores e enredos. Os personagens se vem e se vão sem delongas. É costumeiro mas não é posse. É uma aventura épica a cada oportunidade, pena que nem todos enxerguem assim.

Ônibus é o nome disso. Conhece tudo e todos, cada sotaque, cada trabalhador - talvez não os de alta patente, mas esses não são dignos desse conhecimento abrangente do ônibus. Imaginem só a catraca como se sente, conhece todos os estereótipos possíveis de corpos cansados de debruçam-se e esbarram-se por ali todo santo dia.

Agora sou o vidro que observava, observava e refletia o segundo banco após a catraca, do lado do motorista. Uma mulher com ar doméstico, de quem lava, passa, cozinha, usava roupas baratas e que lhe caiam mal; destacavam um corpanzil deteriorado pelos anos, mas não lhe tirava a feminilidade. Ela se senta naquele banco, vai a janela com cara de quem busca por sossego. Busca jogar nas ruas as angústias que carrega.

Eis que surge um sujeito grisalho. Quarenta? Cinquenta? Nunca saberei. A janela é de vidro, não é bola de cristal. Eu vejo e narro o que vi, não adivinho. Ele era dono dum bigode também grisalho. Uma cara pitoresca, daquelas que a beleza despreza, mas a pobreza se orgulha. Senta-se ao lado da mulher. Estariam eles conversando? Isso não é de meu interesse. Para mim, uma janela de vidro, os raios de meio-sol que transparecem me parecem mais agradáveis que a conversa de duas pessoas randômicas. Ok, mas eles estavam falando alto demais, era chamativo. Após alguns segundos se encarando, um estralo. A coxa da mulher se avermelhou, não me resta dúvidas, e foi apertada por uma mão previamente conhecida, cheguei a essa conclusão depois de ouvir o galante cochicho:

- Você se lembra daquela noite? - não foram só meus olhos onipresentes e transparentes que se arregalaram diante de tanta ousadia, todos ao redor olhavam surpresos. E qual reação esperavam da mulher?

- Deixe de saliência, homem! Deixe de sa-fa-de-za - dizia a mulher se desvirtuando dos dedos que fincavam-lhe a carne da perna, como se com essa esquiva se livrasse dos olhares, um tom desesperador. - Você sequer me ligou.

- Ah, mas você não ligou também e... Me diga, como vai sua vida?

- Arranjei um namorado aí. Imprestável. Acredita que eu dei um sapato de 100 real de presente de Natal e ele nem presente me deu, acredita? Vê se pode...Terminei com o traste, não soube me dar valor.

- É, que coisa feia, mais deselegante. Se fosse comigo eu daria um denguinho, não é? Não se faz uma coisa dessas...

- Mas e você? Soube que você estava de namorico...

- Não mais. Ela não era pra mim, sabe? Ela era possessiva demais, sabe? A gente estávamos dividindo apartamento, sabe? E era assim, um dia eu cheguei cansado do trabalho, deitei no sofá, pedi um dengo e ela ficou brava. Sabe por quê? Porque era aniversário dela e eu não lembrei. Ah, mas é demais uma coisa dessas.

- Vê se pode uma coisa dessas...

- Mas e o Tonico?

- Ah, esse aí não presta! Acredita que ele terminou comigo porque me viu nos amassos com o Tonhão? Isso lá na estação. Ô homem bom! Mas aí ele viu, e terminou. Vê se pode...

- Mas então, que dia vou poder te visitar - aquela história de mão boba nunca foi aplicada em situação tão incômoda quanto parecia estar sendo para aquela mulher.

- Deixe de saliência, homem, deixe de safadeza! - desconsertada muda de assunto - E quando é que você volta a trabalhar no mesmo turno que eu?

- Estou vendo, depende do chefe... Saudades de fazer gostoso no ônibus... - aperta ainda mais vorazmente a pobre mulher.

- Chega de saliência, homem!

- Nossa, suas coxas estão gostosas, andou malhando?

- Na verdade, estou sim. Ontem o professor ia fazer a gente dançar forró, daí nem tem muito homem na sala e todas as mulheres foram assanhadas para ele, mas eu não, olhe lá! Mas aí ele falou que já tinha escolhido o par dele, e me tirou para dançar.

- Hm,- constrangimento? Mas qual! Sequer ouviu - mas eu percebi que você andou malhando, tá cada vez mais goxxxxtosa!

- Deixe de saliência, hooomem! Deixe de SA-FA-DE-ZA.

Talvez aquela conversa tivesse continuado. Talvez ele tivesse conseguido o que queria. Talvez as janelas tivessem estilhaçado e já não observassem e ouvissem nada. Mas não se estilhaçaram. A porta rangeu, a narradora saiu, o ônibus sumiu Alvarenga a dentro. Mas naqueles bancos, sabe-se lá o que passa nesses turnos, nessas noites memoráveis, nessas saliências... O homenzinho saliente vive dando as caras por aí. Já foi engolido por aquelas portas que rangem diversas vezes. Passou ponderoso sobre aquelas catracas, sentou em diversos bancos, ora vazio ora acompanhado. Sempre vigiado sob o olhar curioso da janela que vos fala. Transparente, nada me foge, nem mesmo que o queira. Perifericamente.

aos ouvidos: Viés - Vivendo do Ócio

por Dani Takase às 06:11
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Domingo, 19 de Setembro de 2010

... de parafrasear lusitanos.

 

"Um não sei quê, que nasce não sei onde,

Vem não sei como, e dói não sei porquê."

Camões.

 

"Um não sei quê, que nasce não sei onde, vem não sei como, e dói não sei porquê." - pensava, apenas pensava. Era um trecho de um poema que ressoava em sua mente há tempos. Era um trecho que de tão petulante até dava cambalhotas. Por que estava tão certo? Era uma verdade que rompeu séculos e ainda assim traduz e não descomplica um sentimento eterno que se renova de tempos em tempos.

"Um não sei quê", que é afinal? Concreto? Abstrato? Relativo. É o beijo? O abraço? Um sentimento, um medo, uma vontade, um querer, um bem, um mal? É ser ou estar? Verbo, substantivo, adjetivo ou advérbio? Decerto que está relacionado a um sujeito... Mas o que é? Possuir ou pertencer? Sentir ou ser sentido? Conjugar o verbo amar ou deixar-se conjugar...

"...que nasce não sei onde," nasce. Nasce ou já estava lá? Surge, imerge, emerge, transforma, adapta. Metamorfoses. Transforma: por dentro, por fora, ao redor.

"...vem não sei como," repentino, brusco, mal educado, sem pedir licença, ousado, descarado. Traz junto uma bagagem de coisas: tralhas nas quais se desperta apego. Perfumes, lembranças, figuras, sombras, sabores, palavras, datas, saudade.

Saudade "e dói não sei porquê". Aquela saudade inata de não sei o quê, não se sabe como, quando, onde. Muitos advérbios interrogativos. Saudade, palavra ingrata. Inexistente na tradução. Sentir falta. Falta, ausência. "Dói, não sei porquê".


por Dani Takase às 03:26
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Domingo, 5 de Setembro de 2010

... de jasmim.

Nem se quer sabe se está sendo sincero. Solta um "Estou bem. Não estou cansado. Pareço cansado?" - e boceja logo a seguir. E o que ela queria ver? Sangue? Ciúmes? Felicitações? Indiferença.

Só pela demonstração fria de falta de afeto, deixou claro que tudo era algo de extrema irrelevância.

Era o cheiro que perturbava. Um cheiro que vinha da noite, das sombras, das lâmpadas de sódio - amarelomortas. Um cheiro que mesmo dentre jardins urbanizados, fechada por tijolos e concreto, jasmim - o jasmim?, a jasmim! - a jasmim exalava seu perfume hipnotizador. Ele respirava aquilo como se fosse o único ar compatível com seus pulmões.

As confusões de todo dia. O cheiro de jasmim, afinal de contas, era da flor?, da noite?, das sombras?, ah! Como pôde se deixar perder por esses caminhos. O cheiro era da pele. Pele como pétala - branca, aveludada, macia, tenra. A única diferença talvez fosse os poros arrepiados com o frescor da brisa noturna. Arrepios da flor ou dela? Pétala.

Comparara uma flor a um corpo. A pureza da flor à alma. Cheiro é perfume? Terá ela gosto? Fome? Tem sentimentos? Alguma coisa lhe dizia que a flor não iria lhe responder. Talvez os barulhos da rua, ou os silêncios da noite.

Pontos de luz - é o que chamam de estrelas - não conseguiam iluminar muita coisa. Uma noite sem lua, uma rua escura. Guia-me, jasmim. Leva-me a um lugar melhor. Longe... bem perto. Perto dela, braços dela, perfume dela, seu perfume, guia.

E o que era o perfume de jasmim? Eram as flores preferidas de alguém. Me guia. Chegou. Onde estou? Ele está perdido. Há flores e odores. Aromas e amores. Um cemitério cheio de lápides, nas quais enterrou suas lembranças. De cada cova um jasmim. Em cada epitáfio uma mensagem significativa. A ser esquecida ou a ser relembrada - trecho de música, de verdade, de despedida, de pedido, de briga. Enterrou. Mas a terra só guardou e silenciou. Brotaram jasmins. E o cheiro guia...

aos ouvidos: Cássia Eller & Nando Reis.
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por Dani Takase às 01:26
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Sábado, 21 de Agosto de 2010

... de rima, estrofe e verso.

É quando se tem cinco inocentes anos e a poesia é rimar amor com calor, ama com chama, amor com calor, olho com espelho, ana com banana. E hoje minha insensibilidade só me limita a esdruxular com toda a poética métrica, com a simbologia do ABBA, AABB, ABAB. Usar as mesmas palavras: sol, lua, chuva, amor, calor, sorriso, abraço, beijo, menina, mulher, praia, areia, pequena. O verbo querer em todas as conjugações, número, tempo ou pessoa. A verdade é que eu odeio poesia.

As linhas

Parecem

Todas

Incompletas

Há vazio

Frio

Come,

Devora,

Esvazia

E o fim

É não ter fim.

O dia em que eu chorar lendo uma poesia é o dia que eu me renderei e arrependerei de tanto desgostar e as lágrimas estarão ali pra comprovar. Mas a graça das palavras estão no encaixar. Sem sujeito, nem predicado. Pleta-incom. Perdeu o sentido, e a meus olhos a graciosidade e ferocidade.

Que me perdoem os poetas, o classicismo e até a contemporaneidade, mas as linhas completas numerosas e cheias e aqui vos dizem só estão sendo sinceras. Falar de amor e não ter amor. Falar de abandono e não ser abandonado. A sensibilidade do poema é o inimigo da verdade.

Mas aí me engano, e o poema sabe.

O poema sabe que o silêncio é seu pior inimigo.

E silencia.

E se cala.

E se acalma.

E te desespera.

E o fim

É não ter fim.

 

Dedicado a um filósofo grego cujo nome é aumentativo de plato.


por Dani Takase às 03:18
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Segunda-feira, 31 de Maio de 2010

... de tudo que possa fugir do meu controle.

Literalmente não é para romances que havia nascido. Toda e qualquer palavra que escrevia na pretenção de uma narrativa amorosa, uma carta, uma poesia, um cartão, uma canção, uma demonstração mais concreta que seja, era frustrada. Não por falta de tentativa.

Quando criança, metida a poeta, rimava "flor" com "amor" e "risadas" com "mãos dadas", mas por que agora falar de amor era tão frustrante? Talvez a percepção de um cenário contemporâneo onde o amor é banal e mundano a frustrava. Discursos clichês, juras em falso, declarações pré-determinadas num manual de instruções que não se vende em livraria, mas está disponível para download na internet.

Essa metodologia de amor pós-moderno a amargurava e a deixava desacreditada. Perguntar para o rádio o que é amor, não é mais uma alternativa como antigamente. Não são grandes clássicos, são diálogos engraçados.

... Não vale nada, mas eu gosto de você... tzzzz... com outro alguém do seu lado... tzzzzz... aleluia irmãos!... tzzzz... eu sou uma bela vadia, neném, eu quero seu romance ruim... tzzzz...

E depois de todas as frequências, de provar todas as melodias, concluiu que não era com contratos comerciais que ia se identificar. Talvez procurando mais profundamente, algo que a completasse.

Procurou definir o mundo como uma história narrada pelo amor. O pôr-do-sol seria um momento inacabável. Todo um gradiente de cores, azuis que se tornariam rosados, laranjas, amarelos, roxos, azuis, laranjas, azuis, laranjas, azuis. E então viria a lua. E o que seria a lua? Seria um absurdo não ser a lua mais redonda e brilhante e  estonteantemente gigante. Para não falar das estrelas que formariam um liga-pontos sem fim diante dum fundo tão negro que seria comparado aos olhos de alguém. O nascer-do-sol não faria por menos, afinal surgiria do meio das montanhas e acordaria lentamente os olhos que repousam. Mas não citou personagens. Só descrevia a paisagem. No fundo era o que mais importava. Os personagens eram sempre relativos e surreais que o amor não se importava. O narrador já poderia ter cada história de cór, mas não deveria revelar os segredos de ninguém.

E ela não acreditava que o amor fosse narrar sua história tão cedo. E nem se preocupava. E nem se importava.

Num mundo que ela inventava, o amor narrava; o cenário, impecável; o enredo, um mistério; os personagens, indiferentes. Mas e o tempo? A eternidade.

aos ouvidos: Los Bife & Vivendo do Ócio & PATD.

por Dani Takase às 02:32
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Segunda-feira, 10 de Maio de 2010

... de mais um almoço na casa da vó.

Domingo, domingo de maio, outono, frívolo, pessoas fazem compras, pessoas compram flores, fazem cartões e acaloram esse tão frio domingo de maio.

Mas afinal, qual é o tão encantador e nobre sentimento de ser mãe? Numa ordem cronológica bem imprecisa venho fazendo algumas peripécias. Cartões, normalmente pomposos e infantis, poesias com rimas e estrofes simétricamente patéticas. Talvez com a certeza de que o papel fosse para o lixo - não, não é uma coisa que ela faz. Embelezava coisas que já eram dela, só para disfarçar a falta de dinheiro que se tem aos 7 anos para dar-lhe alguma coisa. Encaixotar o brinco de pérolas que ela deixava jogado. Ganhando mais experiência(talvez?), redefinindo conceitos. Deixando os cartões e os "presentes" de lado e apelando para as palavras.

Desde que comecei a apelar para as palavras, nesse dia, nessa época, fico mais sensível e perceptiva a detalhes e emoções das pessoas alrededor. Buscando em vão decifrar qual é, afinal, o segredo. Qual o mistério.

Imagino que em breve ela mereça mais que palavras, mais pensar em material é pensar obrigatoriamente em renda - uma coisa que falta a uma adolescentezinha de 15 anos. Ela vai ter que esperar. Ter que esperar a panela de pressão que cansei de prometer.

Dessa vez ainda não sei. Já passa de meio-dia e ainda devo-a um abraço.

Pensar em mãe e pensar em heroína sem pensar em vilã. Pensar em paz sem pensar em guerra. Pensar em amor em pensar em ódio. Pensar em alegria sem pensar em TPM - pelo menos hoje.

São raros os vespertinos vazios no ônibus que me inspira tanto. Mas fugi de muita coisa. De um almoço em família, talvez. De congratuções pra milhares de mulheres, grandes mulheres. E como dizem por aí, "É na multidão que a gente se sente mais sozinho". Uma jaqueta azul, uma camisa xadrez, uma camiseta com fita rabiscada, uma jeans velha, um allstar limpo e zero quilômetros.

- Papai, mas que flor você vai comprar pra mamãe?, diz enquanto se debruça entre o ombro do pai e entre a janela do ônibus, com o dedinho esmagado que aponta para um vendedor de flores. - Ah, flores! talvez em breve tenha meigas coisas pra falar sobre flores. Envolve flores. Me envolve.

Quem sabe um dia quem ganhe esses cartões pomposos seja eu. Com uma princesa desenhada, ou então uma bola de futebol. Uma menininha pra levar ao ballet, ou um menininho pra levar ao judô. Um nerd pra comprar livros ou alguém pra ter que ensinar matemática. Me imaginar como uma criatura dócil, sensível, maternal? Difícil. Possível.

Ganhei um tango, um autógrafo, um sorriso, um olá. Tudo muito normal. Um tango. Tudo o que eu precisava.

Feliz dia das mães, pra quem é/quer/pretende/analisa/simpatiza, whatever.


por Dani Takase às 01:36
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