(para Danielle Takase)
"Se eu disser que vi um pássaro
Sobre o teu sexo, deverias crer?"
Hilda Hilst: Do desejo
É tarde, a noite nasce
Na salinha de livros, encontro-te debruçada
Em cima de uma leitura longa
Longínqua sensação, quietude
Os olhos fechados como riscos sutis,
Exuberância até no despertar,
Como quem só dissimula o sono, e não dorme
Imensa a noite cravada na salinha
Quando me diz de teu amor
Livros
Arrumados na estante e desarrumados dentro de ti
As capas trapaceiam, são meigas
Ah! Ansiedade em agarrar o instante
Em que pousas dócil em cima das páginas
Enquanto crianças na rua brincam, eufóricas
Toda essa implacável inocência me constrange
Autonomia descompromissada de um pássaro
Assim, a levantar vôo quando começo o romance
Sombras, inacessível teu rosto na salinha
Corpos
Invadem o cômodo, provocam a eternidade
Minha vigília agora desconcertada e uma falta de ar
O pássaro, negro de tanto querer, pia sermões de libertinagem
Dilacerada qualquer ilusão, corruptível o anjo nu, ninguém imune
Arrepiada até a virgem do quadro que, imóvel, assiste ao ato
Todo o tormento torna-se bom, o pássaro assim livre
Gemidos ecoam em todas as páginas, como é que foram rasgar?
Opressivo, o duelo já é mais que hábito
Necessidade maníaca de ser/ler, mesmo quando fecho o livro
Risos
Enquanto conto tais sutilezas do pensamento, me confortas:
''Poesia é beijo de mãe antes de dormir / Quando ela está ausente''
Desfila pela salinha com o livro de poemas, provocativa
Batalha que recomeça agora com o sabor do real
Diz mais: ''Imundo, este mundo que habito / A letra sem alfabeto''
Não aguento a educação, quero a dança dos corpos
E quem se propõe a desfrutar da salinha, precisa também ser vítima
Mas erro o gesto, poesia não é beijo de ladrão
Ela corre, em fuga...
Por Renato Virginio