poeta amigo disse-lhe
que escrevia tal qual respirava.
ah, escrevo!
e há tempos não respirava.
Bebeu.
Ser vinho,
ser vil, servil, serviu.
Ser rio,
se riu, ri acho, riacho.
Embebeu.
"Cuando yo decidí quedarme claro
y buscar mano a mano la desdicha
para jugar a los dados,
encontré la mujer que me acompaña
a troche y moche y noche,
a nube y a silencio."
Neruda foi ao chão.
Com sorte, sorriu para a chuva e escorreu pelos bueiros. Perfuma as fétidas águas da cidade, correndo os canos.
Com sorte, sacrificou-se aos pombos e saciou-os. Agora, corta o vento e segue voo até perder-se de vista. No final da digestão, palavras que escorrem no ombro duma roupa limpa.
Com sorte, derrete ao sol e morre aos poucos. Ora, não seria ainda morte um pouco de vida?
Com sorte, bons olhos pousaram sobre ele, tal como límpidos pensamentos e belos amores. Ilustra, então, uma paixão desenfreada. Sussurra-se ao pé do ouvido, baixo e pausado, sempre-sempre.
Com sorte, foi recolhido e trancado - nas mãos, no bolso, na gaveta, na garganta, no peito. Repousa, solene, em algum canto, encanto.
Com sorte (e que sorte), confundiu-se com outras juras. Entre milagres e falácias. Jurou, que sorte.
Com sorte, despertou um sorriso, desenterrou uma memória, um lampejo de deslumbre.
E (com sorte) alguém inventa agora uma estória.
Neruda foi ao chão.
Na noite, na nuvem e no silêncio.
Ella.
Matilde?, assim se chama?, sempre-sempre, aqui ou ali. Eternizou-se.
Talvez assim o poeta nunca morra. Tem qualquer pedaço de chão um pouco de eterno?
Assim, o poeta não morre.
(Chova ou troveje.)
Assim, o poema respira.
Por fim, silenciaremo-nos.
Gracias.
"(...)
ella,
déle que déle,
lista para mi piel,
para mi espacio,
abriendo codas las ventanas del mar
para que vuele la palabra escrita (...)"
Sorriu,
nem por isso quis
sorrir.
Um gesto
indigesto,
infesto
tudo a posto
aposto
o gosto.
Gosto.
Um resmungo,
longo,
logo
um rasgo,
uma rusga,
uma ruga,
desgosto.
Desgosto.
e podia assim estar,
sorrindo.
De cabeça pra baixo
até cara feia
é sorriso.
ü
Há lá por fora
um luar
que é um divino pecado...
se viesses, meu amado,
se surgisses agora
ao meu olhar,
se me apertasses, trêmula de susto,
ao teu formoso busto...
Paira lá fora o luar
a tentar a paisagem,
as almas a tentar;
se viesses, meu selvagem,
com teu querer imperativo e rudo,
com teus modos brutais,
a esta lua macia,
eu tudo
te daria
e mais
e muito mais!...
Que seria de mim,
deste meu pobre amor, ai que seria,
se houvesse, noite a noite, um luar assim?
Repara o encantamento
da dor a que te exponho e a que me imponho,
neste mútuo querer de intérmino adiamento.
Gozemos ambos o prazer tristonho,
a ventura dolorida
de prolongar o sonho, que há no sonho
A realidade mais feliz da vida.
A lua desce numa poeira fina,
que os seres todos alucina,
que não sei bem se é cocaína
ou luar...
Fosse eu agora para a rua,
assim, tonta de lua...
Não é noite, nem dia.
Observo, com surpresa,
em toda a natureza
uma triste alegria.
Repara bem que paradoxo no ar,
que dolorosa orgia
em que a alma peca com vontade de chorar!
O meu amor por ti é uma noite de lua,
em que há quanto prazer, em que há tortura quanta,
Em que a alegria chora e a tristeza canta,
Em que, sem te possuir, sou toda tua...
O meu amor por ti é uma noite de lua,
misto de ódio e paixão com que repilo e quero
todo o teu ser de modo mais sincero,
fugindo-te e sonhando, a cada instante,
Palpitante
de gozo
meu corpo amado e amante.
Fosse eu agora para a rua...
Vagabundeia o luar tentando as cousas todas
para prolongamentos, para bodas...
Se chegasses, num lírico transporte,
Se chegasses, meu servo e meu senhor,
A vida que valerá e que valerá a morte,
Diante do nosso amor?
Ao teu abraço cálido e nervoso,
O etéreo tóxico entorpecente,
pela janela,
chega-me à boca, meus lábios gela...
Que frio ardente!
Embrulho-me num manto, olho o espelho: estou nua.
A alma fora de mim, zombando dos refolhos
em que me abrigo.
A alma a fugir-me pelos olhos,
ébria de pó de lua.
Sangrando luz, pendida a trança flava,
uma estrela do além se despenhava...
— Sorriste olhando-a, entristeci-me em vê-la...
Com a alma em fogo, pela noite fria,
em vertigens de amor eu me sentia
rolar no abismo como aquela estrela...
Gilka Machado, em "Meu Glorioso Pecado", 1928.
É quando se tem cinco inocentes anos e a poesia é rimar amor com calor, ama com chama, amor com calor, olho com espelho, ana com banana. E hoje minha insensibilidade só me limita a esdruxular com toda a poética métrica, com a simbologia do ABBA, AABB, ABAB. Usar as mesmas palavras: sol, lua, chuva, amor, calor, sorriso, abraço, beijo, menina, mulher, praia, areia, pequena. O verbo querer em todas as conjugações, número, tempo ou pessoa. A verdade é que eu odeio poesia.
As linhas
Parecem
Todas
Incompletas
Há vazio
Frio
Come,
Devora,
Esvazia
E o fim
É não ter fim.
O dia em que eu chorar lendo uma poesia é o dia que eu me renderei e arrependerei de tanto desgostar e as lágrimas estarão ali pra comprovar. Mas a graça das palavras estão no encaixar. Sem sujeito, nem predicado. Pleta-incom. Perdeu o sentido, e a meus olhos a graciosidade e ferocidade.
Que me perdoem os poetas, o classicismo e até a contemporaneidade, mas as linhas completas numerosas e cheias e aqui vos dizem só estão sendo sinceras. Falar de amor e não ter amor. Falar de abandono e não ser abandonado. A sensibilidade do poema é o inimigo da verdade.
Mas aí me engano, e o poema sabe.
O poema sabe que o silêncio é seu pior inimigo.
E silencia.
E se cala.
E se acalma.
E te desespera.
E o fim
É não ter fim.
Dedicado a um filósofo grego cujo nome é aumentativo de plato.