só é mesmo adeus
quando não dito
quando desdito
quando, feito silêncio,
inexistente
é permanente
um adeus nesse abismal silêncio.
i
Acordou cedo para observar a cidade.
Sentia-se só,
sentia-se todo.
Sentia frio e sentia-se.
Alcançou o cume do arranha-céu,
e caía. Caía como chuva que cai do céu,
sentia. Sentia-se poça,
sentia-se esgoto,
sentia-se parado. Sinal fechado.
Onomatopeias urbanas,
batimento cardíaco,
dor de garganta,
febre.
Dormiu no porta-malas.
e daquilo que fora castelo
não restava pedra sobre pedra
era dor cobrindo dor
grito cobrindo grito
sangue perseguindo lágrima.
Desgraçadamente fria e despreocupada.
Não por falta de preocupação, mas de sensibilidade.
Não por falta de tato,
mas de olfato e paladar.
Mais por fome que por sede.
Mais por medo que por deleite.
Quis.
Pura e simplesmente.
a noite estava irrequieta
o que o asfalto perguntava
o pneu do carro respondia
os saltos da dama respondia
os passos bêbados respondiam
as patas vira-latas
o caminhar dos ratos
os diamantes dos ladrões
os ladrões de amantes
os fantasmas dos atropelamentos
o pousar das misérias poucas
os muitos restos de misérias
tudo rastejava
e nem uma gota sequer
de substância primordial.
Havia vida:
e — mas? — todos viviam uma só.
Havia veneno nas veias,
nas vias
a noite rastejava pela madrugada
ia, viscosa, mas lépida,
porque logo amanheceria.
Vejo na despensa da minh'alma
irrequietas
cerezas em conserva de saudade
todas nadando no vidro transparente,
olhinhos de chuchu vermelhos, na calda vermelha.
Ri quem não tem colírio (e nem nariz).
A musa − vermelha e dentuça − iluminava às segundas-cálidas-feiras.
Utinga veste o manto alviverde − imponente?
gogó de enfeite desceu pro pulso, amante latino,
uns dedos de moça de quem sabe tocar piano.
Só porque a receita do bife leva ajinomoto,
torrada aqui é feita de pão doce e orégano.
urbana a legião, cantava na linguagem que só os cães entenderiam.
− Sabe onde estamos?
Mudos falavam e comemoravam aniversários. Truco.
Amigas − não minta − odiavam-me: e todas hão. Seis.
Não me chames Clarice, nem Veríssimo, nem Ono. Nove.
F do carre*our apagou. É doze.
Regdur emprestava-lhe a sunga. Blefe.
Estava com a camisa vermelha sob o manto estrelado das Américas.
Di era o último a sair, chocolate na testa,
infantil I: reprovação.
Na-na-na-nanananaaaa*
Instante, roda gigante, aperto no coração.
Vida? − urge por transformação. LET IT BE.
Iríamos ao parque de diversões,
− Tudo bem, querida? − e depois,
apresentar-me-ia os narizes mais altivos! Num parque mais além,
lá onde guardam os segredos dos cinéfilos fazedores de ciências sociais.
Bom ombro tem, sabes que tem! E guardo para ti o meu;
− e me ensinou: lá dentro do peito, silêncio é bom também −
seria a voz (desafinada) da tua bondade ecoando:
− Sabe onde estamos? − tudumpás
alegra-me, cereza!, cante mais uma e nunca vá.
* ps 1: mais tarde, em mente e em coração, mudaria o verso para "Não fazes ideia da importância que tens pra mim, sim?", mas por questões satíricas, Hey Jude seria mais apropriado. Te amo. Obrigada por tudo, Victor Augustus Manfredini Vital Bessa.
ps 2: Se vier a reencarnar, nasça com um nome menor, não aguentarei outro acróstico-epopeia.
(para Danielle Takase)
"Se eu disser que vi um pássaro
Sobre o teu sexo, deverias crer?"
Hilda Hilst: Do desejo
É tarde, a noite nasce
Na salinha de livros, encontro-te debruçada
Em cima de uma leitura longa
Longínqua sensação, quietude
Os olhos fechados como riscos sutis,
Exuberância até no despertar,
Como quem só dissimula o sono, e não dorme
Imensa a noite cravada na salinha
Quando me diz de teu amor
Livros
Arrumados na estante e desarrumados dentro de ti
As capas trapaceiam, são meigas
Ah! Ansiedade em agarrar o instante
Em que pousas dócil em cima das páginas
Enquanto crianças na rua brincam, eufóricas
Toda essa implacável inocência me constrange
Autonomia descompromissada de um pássaro
Assim, a levantar vôo quando começo o romance
Sombras, inacessível teu rosto na salinha
Corpos
Invadem o cômodo, provocam a eternidade
Minha vigília agora desconcertada e uma falta de ar
O pássaro, negro de tanto querer, pia sermões de libertinagem
Dilacerada qualquer ilusão, corruptível o anjo nu, ninguém imune
Arrepiada até a virgem do quadro que, imóvel, assiste ao ato
Todo o tormento torna-se bom, o pássaro assim livre
Gemidos ecoam em todas as páginas, como é que foram rasgar?
Opressivo, o duelo já é mais que hábito
Necessidade maníaca de ser/ler, mesmo quando fecho o livro
Risos
Enquanto conto tais sutilezas do pensamento, me confortas:
''Poesia é beijo de mãe antes de dormir / Quando ela está ausente''
Desfila pela salinha com o livro de poemas, provocativa
Batalha que recomeça agora com o sabor do real
Diz mais: ''Imundo, este mundo que habito / A letra sem alfabeto''
Não aguento a educação, quero a dança dos corpos
E quem se propõe a desfrutar da salinha, precisa também ser vítima
Mas erro o gesto, poesia não é beijo de ladrão
Ela corre, em fuga...
Por Renato Virginio
I
antes de conocerte, extraño,
todo era silencio.
ahora − conocéndote, extraño,
eres palabra muda
y ya te extraño.
tu eres el poeta que nada dice
y nada a mi me dirás
porque ya es mi poesía,
te digo, te siento
te extraño.
pues que hace frío y el calor se extraña
y mi piel te extraña
y mis labios te extrañan
y ya no me extrañas
porque me hay olvidado
y olvidada, te extraño
y yo extraña, te olvido.
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poeta amigo disse-lhe
que escrevia tal qual respirava.
ah, escrevo!
e há tempos não respirava.
Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas —
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas —,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.
(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno — não concebo bem o quê —
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente
Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar maldisposto.
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.
Uma eternidade
Eu e você
Caminhando junto
Leminski
Quis prolongar o caminho
O tempo
Desapressar o tiquetaquear
Que já era lento
Acalento
Tiquetaquear do peito, ah.
- Ah.
Hão.
Ei.
E balouçava o balanço
Do trem, da quase noite, do quase dia
Que se prolongava
Em agonia
E agora?
Prosa
Enrola, ata, estica, mói, mastiga.
Poesia
Complica, rodopia, cai, chama.
- Não é por aí.
Fica aqui.
Longe foi.
Nem mãos dadas
Nem suspiros.
Lado a lado
Ainda longe.
Túnel,
Caminhos.
Longe e junto.